Por Padre Eduardo Furtado
Fonte: Site ProParnaiba

O propósito deste livro é precisamente mostrar essas influências
decisivas, mostrar que devemos muito mais à Igreja Católica do que a
maior parte das pessoas – incluídos os católicos – costuma imaginar. Por
que, para sermos exatos, foi ela que construiu a civilização ocidental.
Como nem é preciso dizer, o Ocidente não deriva apenas do
catolicismo; ninguém pode negar a importância da antiga Grécia e de
Roma, ou das diversas tribos germânicas que sucederam ao Império Romano
do Ocidente, como elementos formadores de nossa civilização. E a Igreja
não só não repudiou nenhuma dessas tradições, como na realidade aprendeu
e absorveu delas o melhor que tinham para oferecer.
Nenhum católico sério pretende sustentar que os eclesiásticos tenham
acertado em todas as decisões que tomaram. Cremos que a Igreja manterá
a integridade da fé até o fim dos tempos, não que cada uma das ações de
todos os papas e bispos que já houve esteja acima de qualquer censura.
Pelo contrário, distinguimos claramente entre a santidade da Igreja,
enquanto instituição guiada pelo Espírito Santo, e a natureza
inevitavelmente pecadora dos homens que a integram, incluídos os que
atuam em nome dela.
Mas estudos recentes têm submetido a revisão uma série de episódios
históricos tradicionalmente citados como evidências da iniquidade
dos eclesiásticos, e a conclusão que chegam depõe em favor da Igreja.
Hoje sabemos, por exemplo, que a Inquisição não foi nem de longe tão
dura como se costumava retratá-la e que o número de pessoas levadas aos
seu tribunais foi muito menor(1) – em várias ordens de magnitude – do
que se afirmava anteriormente. E isto não é nenhuma alegação nossa, mas
conclusão claramente expressa nos melhores e mais recentes estudos(2).
De qualquer modo, com exceção dos estudiosos da Europa medieval, a
maioria das pessoas acredita que os mil anos anteriores a Renascença
foram um período de ignorância e de repressão intelectual, em que não
havia um debate vigoroso de idéias nem um intercâmbio intelectual
criativo, e que se exigia implacavelmente uma estrita submissão aos
dogmas.
Ainda hoje continua a haver autores que repetem essas afirmações.
Numa das minhas pesquisas, deparei com um livro de Christopher Knight e
Robert Lomas intitulado Second Messiah [ "O Segundo Messias" ], em que
se traça um quadro da Idade Média que não poderia estar mais longe da
realidade, mas que o público em geral “engole” sem hesitar, por força do
preconceito e da ignorância reinantes.
Podemos ler ali, por exemplo: “O estabelecimento da era cristã
romanizada marcou o começo da Idade das Trevas, esse período da história
ocidental em que se apagaram todas as luzes do conhecimento e a
superstição substituiu o saber. Esse período durou até que o poder da
Igreja Católica foi minado pela reforma”(3). E também: ” Desprezou-se
tudo o que era bom e verdadeiro e ignoraram-se todos os ramos de
conhecimento humano em nome de Jesus Cristo”(4).
Hoje em dia, é difícil encontrar um único historiador capaz de ler
semelhantes comentários sem rir. Essas afirmações contradizem
frontalmente muitos anos de pesquisa séria, e no entanto os seus autores
– que não são historiadores de profissão – repetem com inteira
despreocupação esses velhos e gastos chavões. Deve ser frustrante
lecionar história medieval! Por mais que se trabalhe e se publiquem
evidências em contrário, quase todo mundo continua a acreditar
firmemente que a Idade Média foi um período intelectual e culturalmente
vazio e que a Igreja não legou ao Ocidente senão métodos de tortura e
repressão.
O que Knight e Lomas não mencionam é que, durante essa “Idade das
Trevas”, a Igreja desenvolveu o sistema universitário europeu, autêntico
dom da civilização ocidental ao mundo. Muitos historiadores se
maravilham diante da ampla liberdade e autonomia com que se debatiam as
questões naquelas universidades. E foi a exaltação da razão humana e das
suas capacidades, o compromisso com um debate rigoroso e racional, a
promoção da pesquisa intelectual e do intercâmbio entre os estudantes
dessas universidades patrocinadas pela Igreja – foi isso que forneceu as
bases para a Revolução Científica.
Nos últimos cinqüenta anos, praticamente todos os historiadores da
ciência – entre eles Alistair C. Crombie, David Lindberg, Edward Grant,
Stanley Jaki, Thomas Goldstein e Jonh L. Heilbron – chegaram a conclusão
que a própria Revolução Científica se deveu à Igreja.
E a contribuição católica para a ciência não se limitou às idéias –
incluídas as teológicas – que tornaram possível o método
científico; muitos dos principais inovadores científicos foram
sacerdotes, como Nicolau Steno, um luterano converso que se tornou
sacerdote católico e é considerado o pai da geologia, ou Athanasius
Kircher, pai da egiptologia, ou ainda Rogério Boscovich,
considerado freqüentemente o pai da teoria atômica moderna.
A primeira pessoa a medir a taxa de aceleração de um corpo em queda
livre foi ainda outro sacerdote, o pe. Giambattista Riccioli. E os
jesuítas dominaram a tal ponto o estudo dos terremotos que a sismologia
ficou conhecida como “a ciência jesuítica”.
E isso não é tudo. Poucos conhecem a contribuição da Igreja no campo
da astronomia, apesar de cerca de trinta e cinco crateras da Lua terem
sido descobertas por cientistas e matemáticos jesuítas, dos quais
receberam o nome. Jonh L. Heilbron, da Universidade da Califórnia em
Berkeley, comentou que “durante mais de seis séculos – desde a
recuperação dos antigos conhecimentos astronômicos durante a idade média
até o Iluminismo – , a Igreja Católica Romana deu mais ajuda financeira
e suporte social ao estudo da astronomia do que qualquer outra
instituição e, provavelmente, mais do que todas as outras juntas”(5).
Mesmo assim, o verdadeiro papel da Igreja no desenvolvimento da ciência
continua a ser até hoje um dos temas mais completamente silenciados pela
historiografia moderna.
Embora a importância da tradição monástica seja reconhecida em maior
ou menor grau nos livros de História – todo o mundo sabe que, no
rescaldo da queda de Roma, os monges preservaram a herança literária do
mundo antigo, para não dizer a própria capacidade de ler e escrever - , o
leitor descobrirá nesta obra que a sua contribuição foi, na realidade,
muito maior. Praticamente não há ao longo da Idade Média nenhum
empreendimento significativo para o progresso da civilização em que a
intervenção dos monges não fosse decisiva. Os monges proporcionaram “a
toda a Europa [...] uma rede de indústrias-modelo, centro de criação de
gado, centros de pesquisa, fervor espiritual, a arte de viver[...], a
predisposição para a ação social, ou seja, [...] uma civilização
avançada, que emergiu das vagas caóticas da barbárie circundante, São
Bento, o mais importante arquiteto do monacato ocidental, foi, sem
dúvida alguma, o pai da Europa. E os beneditinos, seus filhos, foram os
pais da civilização européia.
O desenvolvimento do conceito de Direito Internacional e
normalmente atribuído aos pensadores e teóricos dos séculos XVII e
XVIII. Na realidade, porém, encontramos pela primeira vez esse conceito
jurídico nas universidades espanholas do século XVI, e foi Francisco da
Vitória, um sacerdote e teólogo católico e professor universitário, quem
mereceu o título de pai do direito internacional. Em face dos maus
tratos infligidos pelos espanhóis aos indígenas do Novo Mundo, Vitória e
outros filósofos e teólogos começaram a especular a cerca dos direitos
humanos fundamentais e de como deveriam ser as relações entre as nações.
E foram esses pensadores que deram origem à idéia do direito
internacional tal como hoje o concebemos.
Aliás, todo o direito ocidental é uma grande dádiva da Igreja. O
direito canônico foi o primeiro sistema legal moderno a existir na
Europa, demonstrando que era possível compilar um corpo de leis coerente
a partir da barafunda de estatutos, tradições, costumes locais etc. que
caracterizava tanto a Igreja como o Estado medievais. De acordo com
Harold Berman, “a Igreja foi a primeira a ensinar ao homem ocidental o
que é um sistema legal moderno. Foi a primeiro a mostrar que costumes,
estatutos, decisões judiciais e doutrinas conflitantes podem ser
conciliados por meio de análise e síntese”(7).
A própria idéia de que ser humano tem direitos bem definidos não se
deve a Jonh Locke e Thomas Jefferson – como muitos poderiam pensar –
, mas ao direito canônico. E muitos outros princípios legais importantes
do nosso direito também se devem à influência da Igreja, graças ao
empenho milenar dos eclesiásticos em substituir as provas em juízo
baseadas em superstições – como o ordálio -, que caracterizavam o
ordenamento legal germânico, por procedimentos baseados na razão e em
conceitos legais elaborados.
De acordo com a história econômica tradicional, a economia moderna
teria sido criada por Adam Smith e outros teóricos do século XVIII.
Estudos mais recentes, no entanto, vêm enfatizando a importância do
pensamento econômico dos últimos escolásticos,
particularmentedos teólogos espanhóis dos séculos XV e XVI. Tem-se
chegado até designar esses pensadores – assim o faz o grande economista
do século XX Joseph Schumpeter - como fundadores da moderna economia
científica.
A maior parte das pessoas tem uma vaga noção das obras assistenciais
da Igreja Católica, mas muitas vezes não sabe como foi única a sua ação
nesse campo. O mundo antigo fornece-nos alguns exemplos de liberalidade
para com os pobres, mas tratava-se de uma liberalidade que procurava
fama e reconhecimento para o doador, tendendo a ser indiscriminada e não
dirigida especificamente àqueles que passavam necessidade. Os pobres
eram com excessiva freqüência tratados com desprezo, e a simples idéia
de ajudar os necessitados sem nenhuma expectativa de reciprocidade ou de
ganho pessoal era alheia à mentalidade da época.
Mesmo William Lecky, um historiador do século XIX sempre hostil à
Igreja,chegou a admitir que a dedicação aos pobres – tanto no seu
espírito como nos seu objetivos – constituiu algo novo no mundo
ocidental e representou um avanço surpreendente com relação aos padrões
da antiguidade clássica.
Em todas essas áreas, a Igreja imprimiu uma marca indelével no
próprio coração da civilização européia. Um recente livro de história da
Igreja Católica tem por título Triunph ["Triunfo"]: é um título
extremamente apropriado para resumir de uma instituição que tem no seu
haver tantos homens e mulheres heróicos e tantas realizações históricas.
Até agora, encontramos relativamente poucas dessas informações nos
livros de texto que a maioria dos estudantes tem de estudar no ensino
médio e superior.
A Igreja Católica configurou a civilização em que vivemos e o nosso
perfil humano de muitas maneiras além das que costumamos ter presentes.
Por isso insistimos em que ela foi o construtor indispensável da
civilização ocidental. Não só trabalhou para reverter aspectos
moralmente repugnantes do mundo antigo – como o infanticídio e os
combates de gladiadores -, mas restaurou e promoveu a civilização depois
da queda de Roma. Tudo começou pela educação do bárbaros.
O autor é bacharel pela Universidade de Harvard e doutor por Columbia, além de
outros títulos.
Notas:
(1)
Isto é, no número de zeros depois dos algarismos significativos.
Concretamente, não foram milhões, como às vezes se diz, mas centenas (N.
do Editor).
(2)Veja-se, por exemplo, Henry Kamen, The Spanish
Inquisition: A Historical Revision, Yale University Press, New Haven,
1999; Edward M. Peters,InquisitionUniversity of California Press,
Berkeley, 1989.
(3)Christopher Knight e Robert Lomas, Second Messiah, Fair Winds Press, Gloucester, Massachussets, 2001, pág. 70
(4) Christopher Knight e Robert Lomas, Second Messiah, pág. 71.
(5)Jonh
L. Heilbron, The Sun in the Church: Cathedrals as Solar
Obsertvatories,Harvard University Press, Cambridge, 1999, pág. 3.
(6) Réginald Grégorie, Léo Moulin e Raymond Oursel, The Monastic Realm,Rizzoli, New York, 1985, pág. 277.
(7) Harold J. Berman, The Interacion of Law and Religion, Abingdon Press, Nashville, Tenesse, 1974, pág. 59.
Excerto do livro: “Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental” de Thomas E. Woods Jr.
0 Comentarios "O que a civilização ocidental “deve” à Igreja Católica?"
Postar um comentário