1º O que compreendemos
por liturgia?
Liturgia é
serviço do povo, realizado em benefício deste. Numa análise filológica, vem da
raiz grega Laos= povo e Ergon= ação. É ação, trabalho, serviço. Ação esta que
antes do Vaticano II, o povo apenas assistia como meros espectadores sem
compreender o que era feito. A partir do Vaticano II, o conceito de liturgia
voltou ao seu sentido primeiro: ação do povo. Hoje se fala em participação,
celebração, porque todo povo batizado faz parte do sacerdócio real de Cristo,
chamados à transformação e santificação da vida e da história.
Esta ação não é
feita sozinha. É feita em parceria com o próprio Deus, e através da fé
percebemos a sua presença amorosa e sua ação permanente a serviço da vida. A
ação de Deus se dá através de Cristo, seu Filho amado que se fez irmão e
servidor com sua encarnação, vida, paixão, morte e ressurreição. Nesse sentido,
afirmamos que Cristo é o liturgo por excelência.
Em linhas
gerais, a liturgia é a ação de Deus realizada em Jesus Cristo, e através do seu
espírito, em nós a favor de toda humanidade.
É também o
memorial do mistério pascal de Cristo celebrado na Igreja. A cada rito[1] celebrado fazemos
memória[2] do ressuscitado na
vida de cada pessoa e da comunidade.
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2.1 O mistério celebrado no primeiro milênio da nossa era
É importante
termos presente que para compreendermos LITURGIA devemos, antes de tudo, fazer
uma análise do que aconteceu nos primeiros séculos da Igreja, isto é, como a
LITURGIA era celebrada pelos primeiros cristãos, para que ao chegarmos na nossa
era, compreendamos, à luz do Vaticano II, o significado deste mistério[3] celebrado, que por sua vez significa experimentar a presença de Deus na
nossa vida. É a ação de Deus na qual Ele
entra em comunhão com o mundo e com os homens. De um lado Deus se revela e se
comunica ao homem, e de outro, o homem entra em comunhão com Deus. Deus é
mistério em si mesmo porque é comunhão de vida, de amor e felicidade em si
mesmo. Para a Sagrada Escritura, os Padres da Igreja e a Liturgia, mistério é o
plano de Deus de fazer o ser humano participante de sua vida, de salvar a
humanidade. Além disso, é visto sob o aspecto divino da salvação. Neste caso, o
mistério de Deus é revelado em seu Filho Jesus Cristo, o Verbo Encarnado, isto
é, que se fez humano para a nossa salvação. Ao se revelar em Jesus Cristo, Ele
comunicou a sua vida eterna mais íntima ao ser humano. Para compreendermos o
mistério é necessário termos fé, pois este brota da nossa espiritualidade. Depois
deste ensaio, vamos estudar a liturgia nas suas origens.
Na era apostólica, mais conhecida
como tempo dos apóstolos, Jesus e seus seguidores praticavam a religião
judaica. Participavam das celebrações litúrgicas (templo, sinagoga, oração e
festas). Jesus era um homem muito piedoso, assim como seus seguidores
(apóstolos) e participavam assiduamente da religião de seu povo.
Jesus
e os apóstolos não vieram romper com a liturgia antiga, pelo contrário, vieram
dar pleno cumprimento (Mt 5,17), aperfeiçoá-la. Assim sendo, deu uma nova
orientação aos ritos judaicos já existentes. Portanto, a nossa liturgia cristã
é uma continuidade da liturgia hebraica. O nosso referencial é Jesus de Nazaré.
A partir do mistério de Cristo, aconteceu uma cristianização dos elementos
ritualizados herdados, surgindo daí a liturgia cristã. Os elementos rituais
são:
ELEMENTOS JUDAICOS X ELEMENTOS CRISTÃOS
Judaísmo Cristianismo
ÚLTIMA CEIA
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A ceia pascal judaica é uma rememoração da
libertação do povo hebreu da escravidão para a terra prometida.
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Fazemos memória da Paixão, Morte e Ressurreição
de Jesus. A sua passagem deste mundo para o Pai.
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LITURGIA DA PALAVRA
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A liturgia judaica é celebrada aos sábados na
sinagoga e é feita a leitura da Torá ( Os 5 primeiros livros da Bíblia).
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Leituras bíblicas, cantos dos salmos, homilias.
Na liturgia cristã celebra-se todos os dias, de modo particular no domingo,
dia consagrado ao Senhor.
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ORAÇÃO DOS FIÉIS
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Dezoito bênçãos com a qual se iniciava a liturgia
sinagogal
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Os pedidos das orações dos fiéis na missa após a
profissão de fé.
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A SEMANA
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Sábado (sabático) considerado o dia de descanso e
também reservado para a reunião litúrgica na sinagoga
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Os cristãos deslocaram para o domingo, em memória
da Ressurreição
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ORAÇÃO COTIDIANA
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Oração da manhã e da tarde (laudes e vésperas) e
o ternário das horas (terça, sexta, noa)
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IDEM
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COSTUME DE INICIAR AS ORAÇÕES
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Iniciar as orações litúrgicas com a fórmula
invitatória: Corações ao alto, Oremos e Demos graças.
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IDEM
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DOXOLOGIA
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Breve louvor a Deus no final das orações: Glória
ao Pai; Santo, santo, santo
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IDEM
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ACLAMAÇÕES LITÚRGICAS
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Amém, Aleluia, Hosana, Pelos séculos dos séculos.
|
IDEM
|
São elementos rituais riquíssimos que demonstram como a nossa liturgia
está enraizada na cultura do Antigo Testamento. Em contrapartida, há aspectos
de rupturas entre a liturgia cristã e a liturgia judaica. Em alguns aspectos,
Jesus mantém uma crítica em relação à ordem cultual da religião judaica. Jesus
quer resgatar o fundamento do culto, a saber, o amor que se desdobra na prática
da justiça, da misericórdia, do perdão (cf. Mt 9,13). Também os discípulos de
Jesus, após a ascensão, continuavam participando do templo, porém, não
participavam dos sacrifícios rituais. Como judeus cristianizados, eram
convictos de que a morte-ressurreição de Jesus havia superado o sacrifício da
lei antiga. O templo passou a ser o verdadeiro Templo que agora é Cristo. A
partir de então, a Igreja apostólica começou a organizar-se criando formas
próprias de culto. Uma das características desse novo grupo era a reunião
(aspecto comunitário): É a liturgia dos primeiros cristãos (cf. Mt 18,20, At
4,31; 20,7-8).
Em
At 2, 46 narra-se o momento da refeição, onde partiam o pão e comiam com
simplicidade e alegria. Junto da reunião tinha o momento da oração da benção
(oração eucarística: ação de graças) e o ensinamento dos apóstolos.
Outro
aspecto interessante é que costumavam realizar as reuniões no primeiro dia da
semana. A este dia, deram o nome de “dia do Senhor” (domingo), por ser o dia em
que se recorda a ressurreição do Senhor. Mais tarde surgiu a festa anual da
Páscoa, quando Paulo dizia: “Cristo nossa Páscoa foi imolado” (1 Cor 5,7). A
imolação do Cristo substituiu a do cordeiro da Páscoa anual hebraico. Mais tarde surge também o batismo que já
havia sido prefigurado por João Batista (batismo no Espírito no nome de Jesus).
Embora
não tendo uma regulamentação estável da liturgia, a comunidade apostólica já
dispunha de algumas formas litúrgicas próprias: oração, batismo e eucaristia.
Neste período, séc. II e III, os cristãos procuravam manter-se no âmbito
da tradição judaica. Também foi institucionalizada a prática apostólica de
fazer reuniões para a fração do pão em casas particulares. Eram casas de
famílias nobres que cediam o espaço para as reuniões das comunidades cristãs.
Os
cristãos, herdeiros do monoteísmo judaico (único Deus), eram contrários aos
rituais pagãos. Por causa disso sofriam perseguições violentas pelo fato de
exaltarem a superioridade do cristianismo frente ao paganismo[4]. Eram acusados de
ateus e sem religião por não terem templo, altar, nem sacrifícios e nem
sacerdotes. O templo para a comunidade cristã era o próprio Cristo e nele, a
comunidade cristã forma um só corpo.
Já
podemos falar de uma liturgia inculturada, porque o mundo cristão estava em
contato com o mundo pagão, chamados helênicos. A liturgia vai se adaptando aos
povos do mundo mediterrâneo com sua cultura própria. O mistério de Cristo passa
a ser celebrado com elementos da cultura local. Um exemplo é o testemunho de
Justino, filósofo convertido ao cristianismo. No ano 150, ele escreve uma
apologia em favor dos cristãos, defendendo como era celebrada a missa na
comunidade cristã em meados do séc. II. No relato ela apresenta as seguintes
partes da missa: Reunião no dia do sol (domingo), escuta da Palavra, homilia,
oração dos fiéis, preparação das oferendas, oração eucarística, comunhão e
socorro aos necessitados.
Hipólito
de Roma (ano 215) também nos apresenta um importante documento dizendo como era
organizada e celebrada a missa nessa época. Refere-se ao batismo, havia um
itinerário de iniciação cristã, a eucaristia, uma oração eucarística e as
ordenações (bispos, presbíteros e diáconos com uma oração de consagração para
cada um desses graus. As bênçãos e as orações. Não havia livros litúrgicos e o
presidente improvisava as orações.
Nesse período, a liturgia chega ao seu apogeu, ou seja, atinge sua fase
de estruturação.
No
ano de 313, o imperador Constantino concede liberdade total para a Igreja. Fim
das perseguições! Em todo o império, o número de cristãos se multiplica pelo
fato de ser uma honra, o que equivale a ser um cidadão do império. A liturgia
passa por profunda transformação em sua forma e compreensão. Por estar em
contato direto com a cultura romana, as celebrações passam a assumir um caráter
imponente e suntuoso. A celebração da eucaristia passa a ser presidida pelo
bispo e os cristãos passam a se reunir em locais amplos, nas basílicas
construídas pelo imperador.
A
liturgia passa a receber também na cultura romana, elementos da própria
cultura. Dentro de um contexto político, social e eclesial, os paramentos
adotados são semelhantes ao da corte imperial. As liturgias se transformam em
suntuosas cerimônias pontificais. Os ministros ordenados são revestidos de uma
dignidade de honras igual aos mais altos dignitários do império. Tudo isso é
representado pelo mistério de Cristo, que visto como esplendor passa a ser
expresso exteriormente na forma esplendida dos cerimoniais da corte.
A
Bíblia continua sendo a principal fonte de inspiração na composição dos textos
litúrgicos e na explicação dos mistérios cristãos. Elementos pagãos foram
introduzidos na religião cristã, como por exemplo, a prática de construir
igrejas voltadas para o oriente, o nascer do sol; a festa do natal que entrou
no lugar da festa do nascimento do deus sol da religião pagã.
Existem várias formas de celebrar o rito litúrgico devido à inculturação
da liturgia cristã nas diversas culturas. Eis os dados cronológicos dessa
evolução:



Entendemos que o
mistério de Cristo é um só, mas as formas de celebrações são diferentes.
Durante a história foram organizados diferentes ritos que constituem as
famílias litúrgicas originadas dos antigos e influentes patriarcados: Antioquia[5], Alexandria e Roma.
A ação missionária permitiu a esses grupos se expandissem para outras terras,
formando assim novos ramos litúrgicos, porém não perdendo a essência que é o
mistério de Cristo. [6]
Para ilustrar
melhor, apresentamos a seguinte distinção: existem as liturgias orientais e
ocidentais.
As liturgias
orientais (do oriente) se distinguem em dois grupos, por causa dos seus
patriarcados de origem (Antioquia e Alexandria): o grupo antioqueno e o grupo
alexandrino. O grupo antioqueno se subdivide em siríaco ocidental (que
compreende o siríaco de Antioquia, o maronita, o bizantino e o armeno) e
siríaco oriental (que compreende o rito nestoriano, o caldeu, na Mesopotâmia, e
o malabar, na Índia). O grupo alexandrino abrange o rito copta e o etiópico.
As liturgias ocidentais (do ocidente) são: a romana (da diocese de
Roma), a ambrosiana (própria da diocese de Milão), a hispânica (peculiar da
Espanha), a galicana (das Gálias) e a celta (elaborada entre os povos celtas,
no ambiente geográfico que compreende a Irlanda, a Escócia e País de Gales).
Atualmente, na prática, conserva-se apenas um rito ocidental: o romano. Dos
outros, restaram apenas vestígios, ou estão limitados a lugares bem
determinados (como é o caso dos ritos ambrosiano e hispânico)[7].
2.6 A formação da liturgia romana
clássica
Entre os séc. IV ao VIII foi o tempo em que a Igreja romana foi
organizando sua liturgia de forma esplêndida e rica do ponto de vista
teológico. Posteriormente, esta liturgia sofrerá influência dos povos
francos-germânicos, sofrendo numerosas modificações: ela deixa de ser liturgia
romana pura.
Após
313, como já vimos, a liturgia sai das catacumbas e passa a ser celebrada nas
basílicas. A partir daí, surge a necessidade de organizar as celebrações
litúrgicas de forma mais fixa e rígida. Assim, os bispos de Roma começam a
compilar inúmeras orações, introduzem novos ritos. Surge neste período, o
primeiro livro litúrgico chamado sacramentário. É um livro que contém as
orações presidenciais tanto para as celebrações eucarísticas como dos demais
sacramentos. Também para proclamar a palavra de Deus na
liturgia, fez-se uma seleção de textos bíblicos de forma ordenada segundo o
correr do ano litúrgico. Nasce assim o Lecionário que era dividido em dois
livros: Evangeliário (para uso dos diáconos) e Epistolário (para uso dos
leitores).
Devida
a amplidão das basílicas, foram introduzidas três grandes procissões:
·
A solene procissão de entrada do presidente com seus ministros (
introduziu-se a oração da coleta)
·
A procissão levando ao altar o pão e o vinho (introduziu-se a oração
sobre as oferendas)
·
A procissão em direção ao altar para receber a comunhão sob duas
espécies. (introduziu-se a oração após a comunhão)
As orações
introduzidas no final de cada uma das três procissões variam no decorrer do ano
litúrgico. A proclamação do evangelho também foi ritualizada, reservada ao
diácono e a procissão era acompanhada de luzes, incenso e aclamação do Aleluia.
A oração eucarística é a única, com variadas orações do prefácio. Mais tarde
foram acrescentados o glória e o cordeiro de Deus.
É importante
ressaltarmos que as orações introduzidas na missa (coleta, prefácio, sobre as
oferendas, após a comunhão) possuem uma forma literária elegante. São orações
dirigidas ao Pai, por Cristo, no Espírito Santo.
A partir do séc. VII os ritos litúrgicos do ocidente e do oriente já
haviam adquirido suas características fundamentais. Ao longo do séc. VIII e
início do séc. IX acontece o fenômeno de imigração da liturgia romana para as
terras franco-germânicas. Este fator será importante para compreendermos a
cultura religiosa brasileira e latino-americana.
Por
ela, a liturgia romana foi adaptada à liturgia galicana para depois retornar à
Roma como fundamento da liturgia romana da idade média. Tudo isso aconteceu
pelo fato dos bispos e abades franco-germânicos terem simpatizado pelo ritual
romano e terem demonstrado insatisfação com os ritos franco-germânicos. Ficaram
admirados pela suntuosidade da liturgia, ao mesmo tempo simples e pelos textos
litúrgicos romano.
Dado
o apreço, o imperador franco-germânico, Carlos Magno, com o intuito de
uniformizar a liturgia em todo o império, pediu ao papa Adriano I uma cópia do
sacramentário romano. Carlos Magno, ao instituir o rito percebeu que o mesmo
estava incompleto, não havendo os vários formulários de missa e bênçãos, que o
povo galicano prezava muito. A solução foi incorporar vários elementos próprios
da liturgia galicana, tais como: benção do círio pascal, orações para
ordenações, bênçãos, dedicações de Igrejas e exorcismos. Daí surgiu uma
liturgia romana-franco germânica.
A
liturgia galicana se caracterizava pela dramaticidade das orações e das ações
litúrgicas, caracterizada pelo pavor diante da divindade, uma forte consciência
de pecado, um inquietante sentimento de culpa e um grande individualismo
religioso.
A
missa passa a ser uma devoção privada do sacerdote e não mais comunitária.
Começa-se a perder o caráter pascal da celebração cristã e passa-se para uma
espiritualidade fortemente individualista. Dá-se mais importância aos aspectos
sentimentais da meditação da paixão de Cristo do que o mistério da fé na
ressurreição.
Em
contrapartida, surge na liturgia franco-germânica o famoso hino Veni Creator
Spiritus. E surgem nesse período, as magníficas Igrejas românicas na França,
Alemanha e Espanha. Apesar de esta liturgia ser pouco eclesial-comunitária,
mais tarde Roma a adotará como liturgia romana obrigatória para todas as
liturgias do ocidente, tornando-se uma liturgia devocionista e individualista.
3 O mistério
celebrado no segundo milênio da era cristã
A
partir do final do séc. IX a liturgia romana inicia uma nova fase que durará
por muitos séculos. A maior parte do segundo milênio é caracterizada por uma
liturgia romana totalmente distanciada da tradição antiga. Roma adota a
liturgia romano-franco-germânica[8]. A vida litúrgica e espiritual passa por uma terrível decadência. Os
papas deste período foram considerados indignos de assumir o governo da Igreja
católica. Tanto os papas como o clero manifestavam pouco interesse pela vida
litúrgica da Igreja. É um fato assustador, pois Roma elaborou e viveu dos
séculos IV a VIII uma liturgia bastante suntuosa.
Os
imperadores Otâo I e Otão II, em suas viagens a Roma, ficam horrorizados pelos
caos religioso e cultual que proliferava na cidade eterna. Eles mesmos
decidiram promover a vida litúrgica na cidade eterna, insistindo no uso dos
livros litúrgicos romano-franco-germânicos trazidos da Alemanha. Estes livros
foram adotados no norte dos Alpes alemães a partir do séc. VIII. Com a
contribuição dos povos franco-germânicos, a vida litúrgica e espiritual em Roma
assume um novo sentido.
Superada
esta decadência, os papas voltam a assumir com responsabilidade a liturgia
romana, até então dominada pelos soberanos e bispos dos Alpes. O
Papa Gregório VII (1073-1085) propõe uma ampla e profunda reforma
na Igreja. Seu objetivo era recuperar as fontes antigas, zelar pela disciplina
moralizando o clero e elevar a dignidade do sacerdócio. Neste sentido havia um
interesse específico pela liturgia. Quem celebra a liturgia deve ter dignidade,
respeito, coerência de vida e santidade. Como se vê, a moralização do clero
gerou um monopólio clerical da liturgia. Começa-se aqui o individualismo
religioso por parte dos padres. Gregório VII não recupera o caráter comunitário
da liturgia romana clássica dos séc. IV a VIII.
A
reforma gregoriana não obteve sucesso pelo fato de ter ocorrido uma
centralização romana. Em se tratando especificamente do culto, todas as Igrejas
do Ocidente foram obrigadas a seguir o modelo de liturgia da cúria romana
estabelecida pelo Papa Gregório VII, e que, no fundo, manteve a mesma estrutura
da liturgia romano-franco-germânica.
O Papa Inocêncio III (1198-1216)
dedicou-se à reforma dos livros litúrgicos. Na liturgia romana clássica, como
vimos, para cada ator da celebração havia um livro. Naquela época, a celebração
litúrgica expressava o caráter bem comunitário. Com o tempo, a participação
ativa dos fiéis diminuiu e tudo acabou sendo confiado ao sacerdote. Este se
tornou o único ator da celebração e a assembléia se tornou meros espectadores.
Para
tornar mais prática a celebração, ao invés de usar os variados livros
litúrgicos ao mesmo tempo (Sacramentário, Lecionário, Antifonário etc), tudo
era reunido num único volume o qual chamamos de Missal. Nasce então o Missal,
usado pelos sacerdotes quando celebravam missas sozinhos. Um livro que não
contemplava a presença da assembléia. Este livro será imposto para todas as
igrejas.
Ocorreu
o mesmo com o livro de oração eclesial. Por motivo de comodidade e para a
oração privada, inclui-se num único livro contendo tudo o que é necessário para
o ofício divino, chamado mais tarde de Breviário[9].
3.2
Algumas características da liturgia romana da Idade Média
Mesmo diante das
reformas de Gregório VII e Inocêncio III, a liturgia continua distante do povo
e cada vez mais clerical, ou seja, reservada ao sacerdote.
·
Enquanto o padre reza a missa no altar distante, o
povo se entretém com as devoções particulares. A comunhão é substituída pela
adoração da hóstia. Ver a hóstia de longe, adorando-a, tornou-se uma forma de
comungar. Por isso que na consagração, os padres adotaram o costume de elevar a
hóstia e mais tarde o cálice. Este era o ponto mais importante da missa. Era um
momento importante para os fiéis. Para tal, introduziram o uso da campainha
para chamar atenção do povo e enfatizar este momento.
·
A adoração eucarística substituiu o verdadeiro
sentido da eucaristia vivido nas comunidades primitivas (assembléia, caridade,
comunhão e sacrifício). Surge também no séc. XIII a festa de Corpus Christi[10], tornando-se a
festa mais importante do ano litúrgico, estando acima da festa da Páscoa.
·
É muito forte o costume devocional das missas
privadas pelos defuntos, em honra aos santos e por diferentes intenções
particulares. Conseqüentemente cresce o número de padres ordenados somente para
rezar missa (altaristas) e a dramatização dos gestos litúrgicos durante a missa[11] (sinal da cruz
constante, genuflexões e movimentos de um lado para o outro). A liturgia era um
teatro religioso medieval.
·
Os sacramentos perderam a sua originalidade, ou
seja, como celebração do mistério pascal e passou a serem vistos como remédio
que cura, purifica, previne e fortalece.
3.3 Reforma litúrgica do Concílio de Trento
O
Concílio[12], celebrado na
cidade de Trento nos anos de 1545-1563, foi de grande importância para a vida
da Igreja, pois o séc. XVI foi um período muito conturbado na Igreja. Em 1517
eclodiu-se a reforma protestante liderada por Martinho Lutero, rompendo-se com
a Igreja e fundando a igreja luterana, e mais tarde, na Inglaterra, o rei
Henrique VIII também rompe com Roma e funda o Anglicanismo. Um novo cisma
abalou as estruturas internas e externas da Igreja Católica. Lutero questionava
os abusos existentes dentro da Igreja, também no que diz respeito à liturgia. O
Concílio de Trento promoveu algumas reformas litúrgicas importantes, porém
parcial, pois não havia tempo para fazer a reforma completa da liturgia.
Os
reformadores reivindicavam uma renovação na Igreja, sobretudo na liturgia. Para
eles havia uma falta de espírito evangélico e exigia o uso da língua de cada
nação, a participação ativa de todos, a recitação das orações em voz alta, comunhão
sob duas espécies, abolir o uso exclusivo de celebrações privadas. Estas
práticas não foram assumidas por Trento e veremos que acontecerá somente com
Vaticano II.
O
Concílio de Trento teve um caráter mais doutrinário do que pastoral, portanto,
dos assuntos discutidos, afirmou-se o caráter sacrifical da missa e a presença
real de Jesus na eucaristia. Por falta de tempo, o Concílio não aprofundou o
aspecto litúrgico da Igreja, mas manteve a liturgia romana que perdurou por
quatro séculos e confiou ao Papa a publicação dos livros litúrgicos[13], que passaram a
ser de uso obrigatório para toda a Igreja, menos as dioceses e ordens
religiosas com tradições próprias de mais de dois séculos.
Em
resposta à reforma protestante, surge um movimento cultural que expressava bem
o espírito da contra-reforma. A este chamamos de barroco. Foi um período de
superação das crises provocadas pelo protestantismo, onde a Igreja Católica se
sentiu vitoriosa, segura e forte. A Igreja assume um caráter triunfalista
acentuando a presença real de Cristo na eucaristia e insistindo cada vez mais
na dignidade dos sacerdotes. Continua-se o modelo de separação entre o padre e
o povo.
As celebrações
são brilhantes, com caráter triunfalista, porém fora do verdadeiro espírito da
liturgia. Nas igrejas os altares laterais se multiplicam, como também a imagem
dos santos e de Maria. A homilia se torna sermão e era feita no púlpito. Os
sacrários são luxuosos, se desenvolve a música sacra e a missa era apenas
ouvida. A festa por excelência no período do barroco foi a de Corpus Christi
com a solene procissão em honra ao rei eucarístico.
Sendo a missa
animada pela orquestra e o coro em voz alta, a participação do povo foi quase
zero. Muitos aproveitavam a ocasião para recitar o rosário e se entregar às
suas devoções populares.
O conhecimento da liturgia no período tridentino e pós-tridentino é
importante para compreendermos as raízes históricas de nossa própria cultura
religiosa brasileira e latino-americana. Queremos dar ênfase à liturgia que
herdamos, sobretudo no período colonial, e “para algumas adaptações desta
liturgia no nosso contexto social e religioso.
A
liturgia que herdamos foi a liturgia do período medieval e pós-tridentino, que
os colonizadores e os missionários portugueses e espanhóis trouxeram para o
continente latino americano a partir de 1492. Uma liturgia de índole
romano-franco-germânica e de língua única e obrigatória (latim) para todos os
povos do ocidente. Uma liturgia igual para todos, porém com o passar do tempo
houve adaptações, o que hoje chamamos de inculturação.
Ainda
estava muito longe de ter uma liturgia, cuja finalidade seria a celebração do
mistério pascal comunitariamente celebrado sob a presidência de seus pastores.
Permanecia o ritual meio mágico celebrado pelo clero, distante do povo.
Herdamos uma liturgia feita apenas para o clero, e o povo assistia passivamente
as cerimônias feitas pelos padres lá no altar.
A
devoção popular tomou fôlego neste período. O povo se dedicava mais à devoção
aos santos, novenas, reza do terço, etc. Os sacramentos eram vistos como
remédio espiritual para curar os males e manter uma boa relação de amizade com
Deus e não como a celebração do mistério pascal em nossa vida. Foi uma liturgia
que predominava o individualismo religioso. Cada pessoa cuidava da sua vida
espiritual sem nenhum compromisso eclesial e de transformação social, sem
sentir-se irmão uns dos outros e membros do corpo místico de Cristo. Em
síntese, não se contemplava o valor da assembléia.
Esta
é a liturgia católica que herdamos durante cinco séculos, o que formou neste
continente uma cultura tipicamente religiosa. Por um lado, o catolicismo
popular teve seus elementos positivos (solidariedade, hospitalidade, piedade,
gosto pela festa, espírito jovial, etc) e negativos (superstição, idolatria do
poder, falta de formação, sincretismo, redução da fé a um contrato com Deus,
individualismo religioso, etc).
A
liturgia teve que se adaptar no contato com os povos desta terra (negros,
índios, colonizadores e mestiços). Um exemplo é a tentativa de adaptação da
celebração do batismo entre os índios do Brasil. Os missionários fizeram a
tradução dos textos para a língua tupi.
Uma
das adaptações mais interessantes é a que aparece na organização do espaço das
celebrações nas igrejas no Brasil. O espaço era dividido em seis recintos:
·
Recinto clerical: presbitério
·
Recinto central: reservado às mulheres
·
Recintos laterais: num plano mais elevado,
reservado para os homens bons, livres e simbolizava a superioridade, tanto
diante do clero quanto das mulheres.
·
O espaço em torno das portas: reservado aos negros
e escravos
·
Um lugar de destaque entre a nave central e o
presbitério era reservado para pessoas mais importantes.
·
O coro, sobre a porta da Igreja, era reservado para
os cantores e a orquestra.
No Brasil
colônia existia igrejas para os escravos e os negros e igrejas para os homens
brancos, como é visível nas antigas cidades mineiras do Brasil colônia (Ouro
Preto, Mariana, etc). As casas, normalmente tinham seus oratórios para a
liturgia familiar. Eles se reuniam para rezar o terço e a oração da noite. O
rezador geralmente era pessoa muito simples e mesmo se houvesse um padre, ele
presidia as orações. As missas eram celebradas com grande pompa barroca
adaptada ao ambiente social do Brasil colônia. No séc. XVI, os jesuítas
permitiam o uso de instrumentos musicais indígenas nas celebrações. Era uma
grande festa e faziam uso de recursos da liturgia barroca para atrair os
índios: músicas, procissões, cruz alçada, paramentos, multicores, bandeiras,
batinas, folhas de palmeiras a serem agitadas nas procissões, imagens teatros,
dramatizações, etc.
São exemplos de
adaptações da liturgia medieval e pós-tridentina no contexto do Brasil colônia.
No seu espírito ela permanecia a mesma, ao passo que o essencial continuava em
segundo plano.
3.5 O caminho da renovação: O movimento litúrgico
No início do séc. XX inicia-se um
grande movimento de renovação litúrgica na Igreja do ocidente. É o chamado movimento
litúrgico, que teve a sua pré-história no período do iluminismo (séc. XVIII) e
da restauração católica (séc. XIX).
O movimento litúrgico aparece na
Europa por volta do séc. XVIII com o intuito de se contrapor ao barroco: o
iluminismo. Teve grande influência na liturgia. Desencadeou um processo contra
a centralidade tridentina e a exagerada exteriorização barroca. Os católicos
exigiam uma liturgia mais simples, que se adequasse à realidade do povo e fosse
por eles compreendida. O problema é que os católicos viam a liturgia mais como
função educadora do povo do que celebração do mistério de Cristo. O que
comprometeu o trabalho de reforma. Em todo caso, este movimento se culminará
com a reforma litúrgica do Vaticano II. E a partir daí compreenderemos que a
liturgia é a fonte primordial da vida cristã.
No Brasil, o movimento litúrgico
surge em 1933 e teve como expoente o monge beneditino Martinho Micheler. Foi
muito bem aceito nos movimentos de Ação Católica e divulgado em quase todo
país, pois pregava o retorno às fontes. As propostas do movimento, às vezes não
foram colocadas de modo feliz por seus divulgadores e acabou formando um
antagonismo com os católicos tradicionais brasileiros. Por um lado os
liturgistas e por outro os devocionistas. Os devocionistas eram mais reacionários
e acusavam o movimento de tentar abolir as devoções populares (culto aos
santos,bao papa, à Virgem Maria e ao Santíssimo Sacramento).
Graças ao movimento litúrgico, o
Concílio Vaticano II pôde concretizar a reforma litúrgica.
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II
O Vaticano II (1962-1965) foi um Concílio de cunho mais pastoral. Era
urgente uma reforma no interior da Igreja e o beato Papa João XXII considerou
como um “Novo Pentecostes para a Igreja”. O primeiro documento aprovado foi a
Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia. No artigo 1°, o
documento afirma que o Concílio deseja fomentar sempre mais a vida cristã dos
fiéis e favorecer para que tudo se convirja para os que crêem em Cristo.
Trata-se de um Concílio que vem de
encontro com a realidade sócio cultural do séc. XX, dialogando com o homem
moderno. A liturgia a partir do Vaticano II foi um verdadeiro retorno às
fontes. Procurou adaptar-se à realidade cultural de cada nação. Um dos grandes
méritos foi a missa celebrada de frente para o povo, tornando assim uma
celebração comunitária em que o centro da celebração é o Cristo.
Texto elaborado
pelo Cl. Geovani dos Santos Pereira
[1]
É o conjunto das cerimónias litúrgicas. Nelas se atualiza a ação salvadora de
Jesus Cristo realizada de uma vez por todas.
[2]
Memória significa recordar um fato acontecido no passado. Ao mesmo tempo, temos
a certeza de participarmos deste mesmo acontecimento e de seus efeitos
salvíficos.
[3]
O mistério é algo oculto que podemos conhecê-lo aos olhos da fé. Toda liturgia
é um mistério celebrado porque narra toda a história da salvação e nos coloca
diante do grande mistério que é Deus, revelado no seu Filho Jesus Cristo. Neste
sentido, o mistério é a presença de Deus. O mistério deve ser entendido como
uma vontade salvífica de Deus em salvar a humanidade. Sem dúvida alguma, este
deve brotar da nossa espiritualidade. Deus é mistério em si mesmo porque é
comunhão de vida, de amor e de fidelidade em si mesmo.
[4]
O paganismo significa a adoração a vários deuses (politeísmo). Era muito comum
entre os gregos nos primeiros séculos.
[5]
Local onde as primeiras comunidades receberam o nome de cristãos pela primeira
vez.
[6]
Ler o Catecismo da Igreja Católica nn. 1200 – 1202.
[7]
BUYST, Ione. O mistério celebrado:
memória e compromisso I. São Paulo: Paulinas. p. 35.
[8]
É uma junção da liturgia de Roma e dos impérios franco e germânicos.
[9]
O Breviário é um livro que contem as orações da Igreja distribuídas seis
momentos ao longo do dia. É o livro oficial das comunidades religiosas e todo
povo de Deus (leigos e leigas) é convidado a seguir esta prática.
[10]
Corpus Christi surgiu com o intuito de exaltar a realeza de Jesus, atribuindo à
ele todas as pompas reais, até então ostentada pelos homens terrenos. Tornou-se
uma festa devocional e até hoje nas
procissões as vias são ornadas com tapetes luxuosos. Ainda é muito
presente esta prática em Minas Gerais.
[11]
O clero celebrava frequentemente as missas votivas e faziam da Igreja um
comércio espiritual.
[12]
O Concílio é uma assembléia da Igreja que reúne os bispos com o objetivo de
tratar de assuntos referentes à vida da Igreja.
[13]
Pio V publicou o breviário (1568) e o missal romano (1570). Clemente VIII
publicou o pontifical romano (1596) e o cerimonial dos bispos (1600).
Fonte: Portal da familia Orionita no Brasil
1 Comentario "A LITURGIA NO INICIO DO CRISTIANISMO ATÉ HOJE COM O VATICANO II"
Corrijam a informação! No dia 7 de julho próximo fará 5 anos e não 4 da Carta Apostólica em Motu Proprio do Papa Bento XVI: Summorum Pontificum sobre a «Liturgia romana anterior à reforma de 1970» (7 de julho de 2007)
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